quinta-feira, 14 de junho de 2012



Noite de 2 de outubro e minha caçula chega em casa com um bolo de pelos de pouco mais de um palmo, tão pouco que cabia numa caixa de tênis.
Tremia muito – mais tarde aprenderíamos o que era sinomose – e chorou a noite inteira do lado de fora de casa, junto a uma garrafa de água morna e uma escova de pelo que até então limpava os móveis de casa.

Iria ficar em casa só aquela noite, mas...

Logo ganhou desenvoltura e aprendeu e nos ensinou muita coisa.
Por exemplo:
ensinou que almoçaria e jantaria ao mesmo tempo que nós, uns na mesa, outra no tapete colocado ao lado da mesa da cozinha.

Sim, no tapete; era uma dama, não comia nada pousado diretamente no chão.

Aprendeu também a sair correndo para a escada da edícula sempre que eu perguntava “Quem foi?”, entendendo que havia sujado em lugar que não devia.

Geniosa, adorava passear de carro e, quando saíamos e não a levávamos, era comum encontrar um montinho mal cheiroso mais ou menos aonde iria colocar o pé assim que descesse do carro.

Era só alguém pegar a coleira e seus latidos de alegria acordavam a vizinhança.

Também aprendeu uma graça que, modestamente, ensinei: dar a patinha.

Esse gesto era a alegria de todos, particularmente das amigas das minhas filhas que viviam estendendo a mão e pedindo para que pousasse sua pata.

Em seguida ganhava carinhos e risadas.


Aos poucos foi avançado os limites que sempre impus de ficar sempre fora de casa: ganhou uma caminha na sala, outra na porta de entrada, do lado de fora. Era necessário ser cuidadoso ao abrir a porta, pois ela passava feito uma bala de fuzil e deitava no seu domínio dentro da casa.

Depois nos seguia até a cozinha e escolhia a ordem dos petiscos: primeiro o de couro de vaca, depois o de carne e por último o biscoito para tirar tártaros.

Nos últimos anos o coração mole de minha mulher já me mandava aceitar que ela dormisse dentro de casa quando lá fora estivesse frio.

Aprendi muito com essa coisinha intuitiva que não podia ver alguém chorar ou com dor que logo se postava ao lado e encostava sua cabeça na perna, a guisa de apoio.



Tenho que agradecer muito minhas filhas, particularmente a Fernanda. Eu já havia enterrado uma companheira de muitos anos e não queria repetir a experiência.

Mas, ainda que não pareça, sou coração mole e também ensinei minhas pequenas que é necessário enfrentar ordens e regulamentos estúpidos.

São não tivessem sido rebeldes um dia, eu não teria vivido a alegria que vivi com nossa Oncinha.


Agora, após essa “uma noite só” que durou mais de treze anos, ela partiu.

Foi a única tristeza que nos deu .

Repousa junto ao manacá que, generoso, haverá de salpicar suas pétalas roxas e brancas sobre o pedaço de chão que será dela pelo tempo que tiver que ser.



Encontre seu caminho, querida.

Um comentário:

Anônimo disse...

Comovente. Tenho uma Golden e entendo perfeitamente esses sentimentos. Engraçado a ocupação do espaço na casa e a relação com a família. Ainda conseguimos limitar seu espaço, mas houve avanços da parte dela. A carência constante é outra característica da Golden. Seu jeitinho para chamar a tenção é irresistível. Um abração. James.